Eu cresci em uma cidade que quase ninguém conhece chamada Gandu. É uma cidade muito pequena no interior da Bahia, a 300km de Salvador. Quando eu era criança, morava num sítio com a minha família. Sou a caçula de 14 filhos que meus pais criaram com muita dificuldade. Como a nossa casa era afastada da cidade, todo dia meu pai precisava levar eu e meus irmãos pra escola.
Falo nisso e me vem a vontade de chorar. Eu vivia ali mas sabia que precisava buscar o que mudaria a minha vida. Eu sempre gostei muito de cuidar das pessoas e me imaginava fazendo isso. Na época eu cheguei a me imaginar professora, até pela quantidade de crianças que havia ali.
Eu não gostava da cor da minha pele, da textura do meu cabelo. Meus pais, mesmo sendo pessoas muito simples, traziam em suas palavras o jeito deles de nos incentivar. Minha mãe costumava falar: “onde um branco chega, o negro também vai chegar”. Naquela época aquilo fazia pouco sentido pra mim e eu não levava muito a sério.
Aos 16 anos eu me casei e logo depois minhas irmãs se mudaram para São Paulo. Elas insistiam que eu viesse pra cá trabalhar. Nós viemos, começamos a estudar, fiquei trabalhando a princípio como babá e após alguns tivemos a Bia, minha filha de 5 anos.
Desde que eu morava na Bahia eu já fazia a maquiagem e a sobrancelha das minhas amigas. Eu não tinha muita referência mas aquilo já estava em mim. Aqui em São Paulo eu continuava fazendo maquiagem e sobrancelha de pessoas que eu conhecia, esporadicamente.
Quando minha filha tinha 3 meses, eu decidi fazer um curso de maquiagem. Não demorou para que eu começasse a trabalhar em alguns salões do bairro onde moro, no Morumbi.
Durante a pandemia eu lancei um curso no Instagram ensinando automaquiagem e sempre começava explicando que o primeiro passo é se gostar. Depois a maquiagem realça o que você quer. Muitas mulheres negras entraram em contato comigo para me agradecer. Foi aí que eu percebi que queria fazer isso pro resto da vida.
Depois de algum tempo fui chamada para trabalhar em uma clínica super renomada e acabei ficando 2 anos. Nesse período, mesmo com uma agenda de 10 atendimentos por dia, atendi somente 3 mulheres negras. Algumas clientes me estranhavam, perguntavam como eu tinha conseguido entrar lá, faziam questionamentos sobre o meu cabelo, diziam que me preferiam de tranças. Foi difícil passar por isso no próprio local de trabalho .Eu questionava meu chefe e incentivava a fazer parcerias com influencers negras e ouvia de volta que o público delas não iria comprar. Foi aí que resolvi começar a empreender pra valer e fazer este trabalho de reconstrução de auto estima.
Existe esse mito que mulheres negras não investem na beleza e é mentira. Elas pagam caro com prazer por produtos e profissionais que sabem cuidar delas. É muito difícil ver coisas que a gente não compactua. Desde quando comecei, a ideia era ter meu próprio negócio. Cheguei a ter um salão na minha casa mesmo antes de trabalhar nessa clínica. Hoje o meu espaço fica na Avenida Faria Lima, uma das mais famosas de São Paulo. E tem dado certo.
Quem deseja trabalhar com Beleza precisa saber que vai estudar muito. É importante aprender sobre a pele, as diferenças, pra que serve cada produto. E precisa ter empatia, sensibilidade, escuta escuta. Uma amiga até brinca que eu pareço psicóloga. O meu objetivo é sempre ouvir as minhas clientes e entender o que elas querem. Eu nunca ofereço mexer em algo na cliente, como uma sobrancelha. Você precisa ser sensível para enxergar a beleza de cada pessoa.
Sobre meu futuro, continuo com alguns projetos para a beleza negra, para que mulheres negras possam se cuidar de forma mais natural. Quem sabe ter minha própria marca? Sei que estou só no começo.
Nessas horas eu lembro do que minha mãe ensinava sobre pessoas negras chegarem onde os brancos chegam. Minha filha às vezes pergunta: “Eu posso trabalhar com computador igual o papai? E trabalhar com maquiagem igual você?”. Eu respondo que ela pode ser o que ela quiser. É lindo ver a auto-estima dela aos 5 anos, diferente do que eu vivia. Hoje minha filha acorda, se olha no espelho e diz: “Sou tão linda!”.
Meu nome é Cleide Assunção e sou mais uma (Se)mente.
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