Eu nasci em São Paulo, na região metropolitana, em uma cidade chamada Suzano. Minha história é a história de alguém que está aprendendo com as adversidades desde muito cedo.
Minha mãe faleceu quando eu tinha 12 anos. Ela trabalhava com limpeza e meu pai é aposentado desde os 14 anos, porque perdeu uma das pernas na CPTM. A história da minha família é de muitas perdas. Eu também perdi os meus irmãos, primeiro o mais novo, quando eu tinha 14 anos. Depois o mais velho também se foi quando eu tinha 21.
Eu sempre gostei de estudar, inclusive eu chorava pra poder ir pra escola. Às vezes eu não podia ir, pra cuidar dos meus irmãos. Eu decidi minha profissão por uma série de situações que se encontraram. Minha primeira opção era fazer administração, mas um dia meu irmão chegou em casa falando que tinha conhecido uma arquiteta que visitou o seu local de trabalho e que o jeito dela parecia muito comigo. Como a minha família sempre trabalhou com obras em construção, pintura, serviços de pedreiro, eu tinha essa vontade de abrir uma empresa com todos eles. Essa conversa com o meu irmão ajudou a aumentar o meu desejo de saber mais sobre Arquitetura e assim escolhi.
Quando comecei a ver os valores da faculdade, me perguntei: como as pessoas conseguem pagar? Aí entendi que quem não consegue pagar e estudar são os negros. Em 2010, o valor do curso era R$ 800,00. O salário mínimo era R$ 510,00. A conta não fecha. É um jeito de fechar as portas pra gente.
Comecei a faculdade em 2013 e em 2014 tive que mudar de instituição. Tive experiências diferentes em instituições diferentes. Em uma delas, mais popular, havia mais diversidade de professores. A outra era um pouco mais elitizada e praticamente não haviam alunos negros. Eu sofri situações de discriminação de vários tipos. Um episódio me deixou muito mal: uma professora me reprovou por conta de um sinal que eu não tinha colocado na prova de cálculo. Fui direto pra reprovação. Em outra situação, com um aluno branco, o professor chegou a perguntar quantos pontos faltavam pra ajudá-lo a passar.
Precisei me afastar da faculdade durante a gravidez da minha primeira filha. Me programei para voltar logo em seguida mas, em 2016, eu descobri que estava grávida outra vez. Não tinha mais a opção de trancar o semestre sob o risco de perder o financiamento, mas um amigo me incentivou a procurar o FIES e consegui.
Mesmo com todas as situações de racismo, não importava ser uma mulher preta, mãe e grávida, ainda por cima. Eu não queria largar o curso. Foi na faculdade, por exemplo, que descobrir que estava em um relacionamento abusivo. Estar no ambiente universitário permite que essas informações cheguem. Mesmo sendo mãe de duas crianças, trabalhando e estudando, resolvi sair dessa relação.
Quando a professora anunciou que estava todo mundo aprovado, foi uma emoção muito grande. Comecei a chorar…
Com todas essas dificuldades, consegui finalmente terminar a faculdade de arquitetura em 2020. Quando a professora anunciou que estava todo mundo aprovado, foi uma emoção muito grande. Comecei a chorar, e meu amigo gritava: “minha amiga foi aprovada, minha amiga foi aprovada”. Nesse dia, era aniversário da minha filha. Lembro que quando descobri que estava grávida, pensei que não tinha nada para oferecer para esta criança. Ouvir aquele meu amigo gritar me fez cair a ficha de que aquele dia foi o único dia em que senti alguém reconhecer o meu esforço.
Venho trabalhando desde então em diferentes empresas, em diferentes funções. Como mulher, é muito difícil trabalhar em obra. Somos deslegitimadas o tempo todo, além de outras situações como o assédio que outro homem jamais sofre ou sofreu. Todos os dias são muito difíceis, mas eu sei que é só uma fase. Não deveria ser assim, mas trabalho para conquistar o respeito e o meu espaço.
Sei que hoje sou minoria, atuando como analista de obras em uma grande instituição financeira, mas minha história mostra que é possível chegar lá. Vejo nas obras que gerencio que os trabalhadores negros são sempre a base. Muito difícil ver um mestre de obra negro, um gestor negro, um engenheiro negro. Quero usar minha história para inspirar outras meninas negras. Ainda há muito o que conquistar. A arquitetura aconteceu na minha vida, mas não fiquei rica. Quer dizer, não fiquei rica ainda, porque sei que vai acontecer.
Meu nome é Joice Santos e sou mais uma (Se)mente.
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