Eu venho de uma família humilde. Sou neta de vaqueiros, trabalhadores do campo. Cresci cercada pela vida rural em uma casa simples, com pouco saneamento básico. Era uma comunidade feliz, apesar da simplicidade. Todos ali se ajudavam entre si. Mas desde criança tinha uma coisa que me interessava que eu destacava: o desenho.
Meu pai até me dava aquelas maletas da Faber-Castell, que toda criança dos anos 1990 queria, porque ele via que eu tinha essa facilidade e eu amava fazer aquilo, mas eu achava que não me daria dinheiro. Conforme fui ficando adolescente comecei a me interessar por outras atividades. Passei 7 anos fazendo teatro e, na necessidade de ler bastante e apreciar obras de arte, aos poucos um novo mundo se abriu.
Por outro lado, à medida que eu crescia também me percebia diferente dos demais. Sofria bullying por ser uma criança muito tímida, era perseguida e me sentia diminuída. A autoestima foi baixando e no final da adolescência chegou a depressão. Com o agravamento do quadro eu precisei procurar um psiquiatra. E aí chegou o diagnóstico que explicou muito da minha vida vida: sou autista. Isso a ajudou a tirar muito do peso que vinha sentindo. Eu não era inferior a ninguém, era apenas diferente.
A minha paixão pelas Artes Cênicas quase me levou a escolher essa profissão, mas acabei conhecendo um curso chamado Multimídia e me apaixonei. Era a oportunidade de juntar várias coisas que eu gostava: animação, arte, design, programação e etc. Eu poderia aprender várias disciplinas e depois escolher o que eu queria fazer de fato. No fim, era o design. Comecei a aplicar o que estava aprendendo primeiro trabalhando em uma corretora de imóveis, depois passei por algumas agências mas me encontrei profissionalmente ao começar um projeto com o Comitê Paralímpico Brasileiro. Ali encontrava diversidade, pessoas de todos os tipos, com várias histórias diferentes e me sentia muito bem com aquela galera toda.
A essa altura já havia tomado duas decisões de carreira: em primeiro lugar queria migrar para UX Design, trabalhar com Experiência do Usuário. E a segunda decisão é que só faria isso se tivesse junto a possibilidade de trabalhar com Acessibilidade.
Não queria ficar procurando vagas aleatórias, mas esperaria a vaga que me brilhasse o olho. E pouco tempo depois surgia uma vaga em uma grande consultoria de tecnologia: “UX Designer com foco em Acessibilidade Digital”. Meus olhos brilharam. Apliquei, fui chamada para o processo e fui aprovada.
Essa primeira experiência trabalhando com Acessibilidade me permitiu trabalhar em projetos interessantes. Em um deles eu ajudei a redesenhar o processo seletivo, com foco em mulheres negras. De repente eu percebi que estava realmente usando minha profissão para abrir portas. Ao final, me emocionei muito quando falamos com o grupo de meninas aprovadas. Conforme cada menina negra abria a câmera a gente via que cada uma era uma potência.
Foi fazendo esse projeto que percebi quem é a Joyce de fato e a responsabilidade que eu tenho com a comunidade. Não é só por ser uma mulher preta. Sou uma mulher preta, autista, lésbica, atualmente trabalhando na Google com Acessibilidade. Existe um grau de responsabilidade nisso que não posso ignorar.
Traduzir o mundo para outras pessoas e cortar barreiras de acesso é meu hiperfoco, quando falamos de autismo. Mas é também meu senso de responsabilidade e consciência de gênero, raça e classe na direção de um mundo mais acolhedor para todas as pessoas, pois somos todos diferentes.
Eu sou Joyce Rocha, mais uma (Se)mente.
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